Introdução
A sobrestadia de contêineres, mais conhecida pelo termo “demurrage, é um instituto de crucial importância para a dinâmica do transporte marítimo e do comércio exterior. Ela representa a cobrança de valores diários pelo tempo que um contêiner permanece com o importador para além do período de franquia (free time) acordado. Contudo, a natureza jurídica dessa cobrança tem sido, por anos, um dos temas mais controversos do Direito Marítimo brasileiro, polarizando o debate entre duas teses principais: seria a demurrage uma indenização por perdas e danos pré-fixada ou uma cláusula penal?
A distinção é mais do que uma mera tecnicidade acadêmica, possuindo implicações práticas e econômicas profundas. Se enquadrada como cláusula penal, a cobrança estaria sujeita aos limites e controles previstos no Código Civil, notadamente a sua limitação ao valor da obrigação principal, conforme o artigo 412. Por outro lado, o entendimento como indenização pré-fixada historicamente conferia aos armadores maior liberdade para estipular valores, muitas vezes resultando em montantes que superavam em muito o valor do próprio contêiner.
Recentemente, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial nº 1.577.138/SP, proferiu uma decisão que representa um ponto de inflexão nesta matéria, realinhando a jurisprudência ao enquadrar a demurrage como cláusula penal. Este artigo propõe-se a analisar de forma aprofundada essa nova orientação, explorando seus fundamentos, o diálogo com o cenário regulatório estabelecido pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e os impactos operacionais e contratuais para todos os atores da cadeia logística.
Vejamos a Ementa:
DIREITO MARÍTIMO E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE SOBRE-ESTADIAS DE CONTÊINERES. DEMURRAGE . PRETENSÃO FORMULADA COM BASE NO CONTRATO. NATUREZA JURÍDICA: INDENIZAÇÃO DE DANO MATERIAL ( CC, ARTS. 402 E 403) OU CLÁUSULA PENAL ( CC, ARTS. 408 A 416). LIMITAÇÃO DA PENALIDADE. POSSIBILIDADE. VALOR DO OBJETO CONTRATADO ( CC, ART. 412). MODICIDADE DO VALOR DA COBRANÇA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. Tem-se ação de cobrança ajuizada por companhia de navegação (transporte marítimo), com o objetivo de obter o pagamento de valores relativos à sobreestadia de contêineres (demurrage), com base em termos contratuais preestabelecidos, independentemente da comprovação de efetivos prejuízos por danos materiais. Fundamenta o pedido na violação de obrigações contratuais relacionadas ao prazo de devolução dos contêineres. 2. No ordenamento jurídico brasileiro, o dano material exige prova de sua ocorrência fática, porque as perdas e danos são o que efetivamente se perdeu e o que razoavelmente (ou provavelmente) se deixou de ganhar, segundo definição dada pelos arts. 402 e 403 Código Civil. Não há, data venia, espaço para presunção de dano material, pois este, diferentemente do dano de natureza extrapatrimonial, a ser sempre reparado por estimativa, deve ser indenizado com precisão pelo ofensor. Logo, deve o dano material ser comprovado em sua existência e valor, como pressuposto para que seja a vítima devidamente indenizada, isto é, recolocada indene. 3. Então, há duas questões em discussão: (I) definir se a cobrança pela sobreestadia de contêineres possui natureza de indenização ou de cláusula penal; e (II) determinar se o valor da sobre-estadia pode ser reduzido, em observância ao princípio da modicidade e à função social dos contratos. 4. Embora a jurisprudência majoritária reconheça a natureza indenizatória prefixada da sobre-estadia de contêineres, afasta contraditoriamente a caracterização desta como cláusula penal. A cobrança de demurrage pelas companhias de navegação decorre de cláusula contratual em valor preestabelecido, caracterizando-se como cláusula penal, disciplinada pelos arts. 408 a 416 do Código Civil. 5. A cláusula penal permite a redução do valor pactuado, quando seja manifestamente excessivo ou desproporcional ao prejuízo sofrido, em observância ao princípio da modicidade ( CC, art. 413). 6. A quantia cobrada a título de sobre-estadia deve ser limitada ao valor equivalente ao do próprio contêiner, ressalvadas as hipóteses de efetiva comprovação de outros danos materiais adicionais a serem compensados ou indenizados, sob pena de onerosidade excessiva e de desequilíbrio contratual. 7. No presente caso, o valor cobrado a título de demurrage não é elevado, alcançando um total de pouco mais de R$ 22.000,00, pela utilização de 21 contêineres, montante inferior ao preço de um contêiner de 20 pés novo, mostrando-se compatível com os danos alegados e com a indenização contratual prefixada, ou seja, com a cláusula penal. 8. Recurso especial desprovido. Recurso Especial nº 1.577.138/SP – STJ.
A Inflexão Jurisprudencial: Do Caráter Indenizatório à Cláusula Penal
Historicamente, o Superior Tribunal de Justiça, em especial através de sua 3ª Turma, consolidou o entendimento de que a demurrage possuía natureza de indenização contratual pré-fixada. Sob essa ótica, a cobrança era vista como uma forma de liquidated damages, regida primordialmente pela autonomia da vontade das partes. A consequência direta era a não aplicação das limitações impostas à cláusula penal, permitindo que os valores cobrados pudessem, e frequentemente o faziam, exceder o valor do próprio contêiner. O fundamento residia na ideia de que a demurrage visava compensar o armador pelos prejuízos efetivamente sofridos pela indisponibilidade do equipamento, prejuízos estes que não se limitariam ao valor do bem, mas envolveriam custos de oportunidade e de reposicionamento logístico. [6]
Contudo, a 4ª Turma do STJ, em uma notável mudança de paradigma, passou a divergir dessa linha. O julgamento do Recurso Especial nº 1.577.138/SP cristalizou a tese de que a demurrage, por ser uma cominação estipulada em contrato para o caso de inadimplemento de uma obrigação (a devolução do contêiner no prazo), se amolda perfeitamente ao conceito de cláusula penal, devendo, portanto, submeter-se ao seu regime jurídico, previsto nos artigos 408 a 416 do Código Civil. [9]
Essa reclassificação jurídica ativa dois mecanismos de controle fundamentais:
O Limite do Valor da Obrigação Principal (Art. 412, CC): A penalidade não pode exceder o valor da obrigação principal. No caso da demurrage, a obrigação principal é a devolução do contêiner. Assim, o valor total da sobrestadia, em regra, não poderia ultrapassar o valor de mercado do próprio equipamento.
A Redução Equitativa (Art. 413, CC): O juiz pode reduzir a penalidade se o montante for manifestamente excessivo, tendo em vista a natureza e a finalidade do negócio. Isso confere ao Judiciário um poder-dever de coibir abusos e garantir o equilíbrio contratual.
A tabela abaixo sintetiza as diferenças entre os dois entendimentos:
| Característica | Natureza Indenizatória (Entendimento Anterior – 3ª Turma) | Natureza de Cláusula Penal (Novo Entendimento – 4ª Turma) |
| Fundamento Legal | Arts. 402 e 403 do Código Civil (Perdas e Danos) | Arts. 408 a 416 do Código Civil (Cláusula Penal) |
| Limite de Valor | Não há teto legal automático; prevalece o contratado. | Limitado ao valor da obrigação principal (valor do contêiner), conforme Art. 412. |
| Controle Judicial | Reduzido; intervenção apenas em casos de extrema onerosidade. | Amplo; possibilidade de redução equitativa por excesso (Art. 413). |
| Prova de Dano | O dano é presumido pelo atraso (dano in re ipsa). | A penalidade é devida pelo simples atraso, mas o armador pode provar danos suplementares para exceder o limite. |
Essa dissidência entre as Turmas de Direito Privado do STJ cria um cenário de insegurança jurídica que, muito provavelmente, levará à afetação do tema para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, buscando-se uma tese unificada e vinculante para todo o Judiciário, a exemplo do que ocorreu com a definição do prazo prescricional para a cobrança da demurrage (Tema 1035).
Os Fundamentos da Decisão: Análise da Ementa do REsp 1.577.138/SP
A ementa do acórdão proferido pela 4ª Turma do STJ sintetiza de forma precisa os fundamentos que levaram à mudança de entendimento. O Tribunal reconheceu que a ação versava sobre cobrança de valores de sobrestadia com base em termos contratuais preestabelecidos, independentemente da comprovação de efetivos prejuízos por danos materiais. Esta constatação foi fundamental para a requalificação jurídica do instituto.
O voto condutor estabeleceu uma premissa dogmática essencial: no ordenamento jurídico brasileiro, o dano material exige prova de sua ocorrência fática. Segundo os artigos 402 e 403 do Código Civil, as perdas e danos correspondem ao que efetivamente se perdeu e ao que razoavelmente se deixou de ganhar. Não há, portanto, espaço para presunção de dano material, que deve ser indenizado com precisão, ao contrário do dano extrapatrimonial, que é sempre reparado por estimativa.
Partindo dessa premissa, o Tribunal identificou uma contradição lógica no entendimento anterior: se a demurrage era tratada como indenização pré-fixada, mas dispensava a comprovação de danos efetivos, então ela não poderia ser verdadeiramente uma indenização nos moldes dos artigos 402 e 403 do Código Civil. A cobrança, na verdade, decorria de “cláusula contratual em valor preestabelecido”, o que a caracteriza como cláusula penal, disciplinada pelos artigos 408 a 416 do Código Civil.
O acórdão estabeleceu, ainda, dois parâmetros de controle:
Controle pelo Princípio da Modicidade (Art. 413, CC): A cláusula penal permite a redução do valor pactuado quando este seja manifestamente excessivo ou desproporcional ao prejuízo sofrido.
Limite ao Valor do Contêiner (Art. 412, CC): A quantia cobrada a título de sobrestadia deve ser limitada ao valor equivalente ao do próprio contêiner, ressalvadas as hipóteses de efetiva comprovação de outros danos materiais adicionais, sob pena de onerosidade excessiva e desequilíbrio contratual.
No caso concreto julgado, o STJ manteve a cobrança de pouco mais de R$ 22.000,00 pela utilização de 21 contêineres, por considerar que o montante era inferior ao preço de um contêiner de 20 pés novo, mostrando-se compatível com os danos alegados e com a natureza de cláusula penal. Esta decisão demonstra que o novo entendimento não visa eliminar a cobrança, mas sim submetê-la a um controle de razoabilidade e proporcionalidade.
O Cenário Regulatório: A Atuação da ANTAQ na Modulação da Cobrança
Paralelamente à evolução jurisprudencial, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) tem desempenhado um papel cada vez mais ativo na regulação da cobrança de sobre-estadia. A agenda regulatória da agência para o biênio 2020/2021 já previa o desenvolvimento de uma metodologia para identificar a abusividade na cobrança de demurrage, um tema que foi mantido na agenda para o triênio 2022-2024.
Um marco importante nesse processo foi a edição da Resolução ANTAQ nº 112/2024, que estabeleceu uma matriz de responsabilidade para a cobrança de armazenagem adicional, e, mais recentemente, o entendimento firmado no Acórdão nº 521/2025. Este acórdão, aprovado em 31 de julho de 2025, estabeleceu premissas claras para a incidência da cobrança, representando uma resposta direta ao aumento das denúncias de práticas abusivas e ao crescimento expressivo da movimentação de contêineres, que atingiu um recorde em 2024.
O entendimento da ANTAQ, em síntese, é de que a cobrança de demurrage só é legítima quando o atraso na devolução do contêiner ocorre por interesse, opção ou responsabilidade do próprio usuário. Em contrapartida, a cobrança é considerada indevida se o atraso for causado por fatores alheios ao controle do usuário, tais como:
- Atos ou omissões do próprio transportador marítimo ou de seus prepostos.
- Falhas na logística do transportador, como a indisponibilidade de depósitos (depots) para a devolução dos contêineres vazios.
- Entraves operacionais no terminal portuário.
- Eventos que se inserem no risco do negócio do transportador ou do terminal.
Essa abordagem regulatória, focada na causalidade e na alocação de riscos, converge com a nova orientação do STJ. Enquanto o Judiciário estabelece um teto e um controle de proporcionalidade para a penalidade, a ANTAQ atua na esfera administrativa para definir as próprias hipóteses de cabimento da cobrança, coibindo-a na origem quando o fato gerador do atraso não é imputável ao importador ou exportador. A combinação desses dois vetores — o controle judicial do valor e o controle administrativo da incidência — cria um ambiente jurídico mais equilibrado e com maior segurança para os usuários do transporte marítimo.
A Relevância Econômica da Questão
A discussão sobre a natureza jurídica da demurrage transcende o debate acadêmico, possuindo impactos econômicos concretos e mensuráveis. O Brasil, cuja economia depende fortemente do comércio exterior — com aproximadamente 95% das transações realizadas por via marítima — movimentou volumes recordes de contêineres nos últimos anos. Apenas o complexo portuário de Santos, o maior da América Latina, movimentou 5,4 milhões de TEUs (unidade equivalente a um contêiner de 20 pés) em 2024, representando um crescimento de 15% em relação ao ano anterior.
Esse crescimento exponencial da movimentação de contêineres, embora positivo para a economia, expõe os agentes econômicos a uma maior vulnerabilidade em relação às cobranças de sobrestadia. Estudos da Confederação Nacional da Indústria (CNI) indicam que a ineficiência portuária, somada aos gastos com demurrage, pode elevar em até 20% o custo logístico das empresas. Em períodos de congestionamento portuário, greves alfandegárias ou indisponibilidade de depósitos, uma única semana de atraso pode consumir margens operacionais inteiras, comprometendo a competitividade das empresas brasileiras no mercado internacional.
A redefinição da natureza jurídica da demurrage, portanto, não é uma questão menor. Ela afeta diretamente a previsibilidade de custos, a gestão de riscos contratuais e a capacidade de planejamento logístico de milhares de importadores e exportadores. A uniformização jurisprudencial, quando vier, terá um efeito estabilizador sobre toda a cadeia multimodal, reduzindo litígios e permitindo que os agentes econômicos concentrem seus recursos na atividade produtiva, e não em disputas judiciais.
Impactos Práticos e Recomendações para os Agentes do Comércio Exterior
A requalificação da demurrage como cláusula penal, somada à atuação fiscalizatória da ANTAQ, não elimina a obrigação de pagamento pela sobrestadia, mas inaugura um regime de maior controle e razoabilidade. Essa nova conjuntura exige uma adaptação estratégica por parte de todos os envolvidos na cadeia logística.
Para Importadores, Exportadores e Despachantes Aduaneiros:
- Gestão Documental Robusta: É fundamental documentar exaustivamente todas as etapas do processo de devolução do contêiner. Isso inclui salvar e-mails, registrar protocolos, tirar prints de tela de sistemas de agendamento que mostrem indisponibilidade e formalizar qualquer dificuldade de devolução junto ao armador ou seu agente.
- Negociação Contratual Proativa: O free time não deve ser visto como um dado imutável. É recomendável negociar períodos de franquia mais longos, especialmente em rotas ou períodos de conhecido congestionamento. Cláusulas que prevejam a suspensão ou prorrogação automática do free time em caso de impedimentos não imputáveis ao usuário (ex: greves, falta de depot) ganham especial relevância.
- Análise Crítica das Cobranças: Ao receber uma fatura de demurrage, é preciso analisá-la criticamente, verificando se o atraso não decorreu de falhas do próprio transportador ou do terminal. Caso a cobrança seja considerada indevida, deve-se contestá-la administrativamente antes de considerar a via judicial.
Para Armadores e Agentes de Carga (NVOCCs):
- Justificativa para Danos Suplementares: Caso a cobrança de demurrage exceda o valor do contêiner, o ônus da prova para justificar o valor excedente recairá sobre o credor. Será necessário demonstrar, de forma concreta, os prejuízos adicionais sofridos, como custos de leasing de contêineres substitutos, perda de fretes ou custos de reposicionamento.
- Transparência nas Políticas de Cobrança: As tabelas de demurrage e as políticas de cobrança devem ser claras, transparentes e de fácil acesso. A justificativa econômica para os valores estipulados pode ser um diferencial em uma eventual discussão judicial.
- Revisão das Cláusulas Contratuais: Os contratos de transporte (Bill of Lading) e de prestação de serviços devem ser revisados para se adequarem ao novo entendimento, talvez incluindo mecanismos de solução de controvérsias ou parâmetros mais claros para a alocação de riscos.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402
